Todos têm uma história que envolve
aromas e sabores para contar, não é mesmo?
Em nosso caso, são várias e,
obviamente, envolvem guloseimas. Bolinho de polvilho saindo do forno tem cheiro
de três meninas procurando o esconderijo dos quitutes que só poderiam ser
devorados depois que toda a fornada ficasse pronta.
Cheiro de bolo de fubá é o
aroma das manhãs de sábado e o gosto do bolo de fubá misturado ao do café lembra as tardes de sábado. Pão assando invariavelmente remete ao nosso querido
pai que fazia os mais deliciosos pães do mundo! Todos os dias nossa casa
cheirava a pão fresquinho.
E por aí vai. Chegávamos da
escola, no final da tarde, e encontrávamos os tais pães e uma jarra verde - de
louça, é claro – cheinha de chocolate quente (chocolate mesmo, amarguinho). Fechar
os olhos e lembrar de tudo isso garante passagem de primeira classe aos
melhores momentos de nossas vidas.
Hoje em dia também
associamos aromas e gostos a momentos especiais. Provavelmente esse processo
nunca terá fim. Teremos 80 anos e nos lembraremos do cheiro-do-pão-da-padaria-da-esquina
(que Deus conserve nossa memória, por favor).
Proust, em sua obra “Em
busca do tempo perdido”, para resgatar a própria infância, recorre a um bolinho
que sua tia costumava fazer. Os tais bolinhos eram madeleines. Há varias histórias
que tentam decifrar a origem das madeleines; deixaremos isso para outra hora. Na
realidade, o que realmente importa é que esses deliciosos bolinhos são a
simplicidade em forma de comidinha, daquelas que se come de olhos fechados e
que levam embora todos os males de nossa vida cotidiana.
E esse é o nosso dia a dia
aqui na Fada Formiga. Cada guloseima tem uma história e quando nossos amigos
fecham os olhos e viajam enquanto devoram um pedaço de bolo de fubá ou um
biscoitinho amanteigado ou uma de nossas deliciosas madeleines (aqui tem de lavanda, flor de laranjeira, limão, água de rosas e jasmim!), nossos corações enchem-se de alegria.
Voltando às madeleines
imortalizadas por Proust, que tal convocar o passado através de um deliciosa madeleine
e uma xícara de chá?
E para quem não conhece, aí está o trecho da referida obra de Proust.
Vale a leitura!
PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido – Vol. 1:
O caminho de Swann. (trecho)
Fazia já muitos anos que, de
Combray, tudo que não fosse o teatro e o drama do meu deitar não existia mais
para mim, quando num dia de inverno, chegando eu em casa, minha mãe, vendo-me
com frio, propôs que tomasse, contra meus hábitos, um pouco de chá. A princípio
recusei e, nem sei bem porque, acabei aceitando. Ela então mandou buscar um
desses biscoitos curtos e rechonchudos chamados madeleines, que parecem
ter sido moldados na valva estriada de uma concha de São Tiago. E logo,
maquinalmente, acabrunhado pelo dia tristonho e a perspectiva de um dia
seguinte igualmente sombrio, levei à boca uma colherada de chá onde deixara
amolecer um pedaço da madeleine.
Mas no mesmo instante em que
esse gole, misturado com os farelos do biscoito, tocou meu paladar, estremeci,
atento ao que se passava de extraordinário em mim. Invadira-me um prazer
delicioso, isolado, sem a noção de sua causa. Rapidamente se me tornaram
indiferentes as vicissitudes da minha vida, inofensivos os seus desastres,
ilusória a sua brevidade, da mesma forma como opera o amor, enchendo-me de uma
essência preciosa; ou antes, essa essência não estava em mim, ela era eu. Já
não me sentia medíocre, contingente, mortal. De onde poderia ter vindo essa
alegria poderosa? Sentia que estava ligada ao gosto do chá e do biscoito, mas
ultrapassava-o infinitivamente, não deveria ser da mesma espécie. De onde
vinha? Que significaria? Onde apreendê-Ia? Bebi um segundo gole no qual não
achei nada além do que no primeiro, um terceiro que me trouxe um tanto menos
que o segundo. É tempo de parar, o dom da bebida parece diminuir. É claro que a
verdade que busco não está nela, mas em mim. Ela a despertou mas não a conhece,
podendo só repetir indefinidamente, cada vez com menos força, o mesmo
testemunho que não sei interpretar e que desejo ao menos poder lhe pedir
novamente e reencontrar intacto, à minha disposição, daqui a pouco, para um
esclarecimento decisivo. Deponho a xícara e me dirijo ao meu espírito. Cabe a
ele encontrar a verdade. Mas de que modo? Incerteza grave, todas as vezes em
que o espírito se sente ultrapassado por si mesmo; quando ele, o pesquisador, é
ao mesmo tempo a região obscura que deve pesquisar e onde toda a sua bagagem
não lhe servirá para nada. Procurar? Não apenas: criar. Está diante de algo que
ainda não existe e que só ele pode tornar real, e depois fazer entrar na sua
luz.
E recomeço a me perguntar o que
poderia ser esse estado desconhecido, que não apresentava nenhuma prova lógica,
e sim a evidência de sua felicidade, de sua realidade, ante a qual as outras se
desvaneciam. Quero tentar fazê-lo reaparecer. Pelo pensamento, retrocedo ao
instante em que tomei a primeira colherada de chá, e encontro a mesma situação,
sem qualquer luz nova. Peço a meu espírito mais um esforço, que me traga ainda
uma vez a sensação que escapa. E, para que nada quebre o impulso com que ele
vai procurar recuperá-la, afasto todos os obstáculos, toda idéia estranha,
protejo meus ouvidos e minha atenção contra os rumores da sala ao lado. Porém,
sentindo que o espírito se cansa sem proveito, forço-o, ao contrário, a aceitar
a distração que lhe recusava, a pensar em outra coisa, a se refazer antes de
uma tentativa suprema. Depois, pela segunda vez, faço o vácuo diante dele, e
coloco-o de novo em face do sabor ainda recente daquele primeiro gole, e sinto
palpitar em mim algo que se desloca, desejaria elevar-se, algo que teria se
soltado a uma grande profundidade; não sei o que é, mas aquilo sobe devagar;
experimento a resistência e ouço o rumor das distâncias atravessadas.
Certamente, o que palpita desse
modo bem dentro de mim, deve ser a imagem, a lembrança visual, que, ligada a
esse sabor, tenta segui-lo até mim. Mas debate-se muito longe, muito
confusamente; mal percebo o reflexo neutro em que se confunde o inatingível turbilhão
de cores remudadas; e não consigo distinguir a forma, pedir-lhe como ao único
intérprete possível, que me traduza o testemunho de sua contemporânea, de sua
companheira inseparável, pedir-lhe que me diga de que circunstância particular,
de que época do passado se trata.
Será que vai chegar até a
superfície de minha clara consciência, essa lembrança, o instante antigo que a
atração de um instante idêntico veio de tão longe solicitar, comover, erguer do
fundo de mim? Não sei. Agora não sinto mais nada, parou, desceu de novo talvez;
quem sabe se nunca mais voltará de sua noite? Dez vezes é preciso que eu
recomece, que me debruce para ele. E, a cada vez, a canseira que nos desvia de
toda tarefa difícil, de toda obra importante, me aconselhou largar aquilo,
beber meu chá pensando apenas nos aborrecimentos de hoje, nos desejos de
amanhã, que se deixam remoer sem fadiga.
E de súbito a lembrança me
apareceu. Aquele gosto era o do pedacinho de madeleine que minha tia
Léonie me dava aos domingos pela manhã em Combray (porque nesse dia eu não saía
antes da hora da missa), quando ia lhe dar bom-dia no seu quarto, depois de
mergulhá-lo em sua infusão de chá ou de tília. A vista do pequeno biscoito não
me recordara coisa alguma antes que o tivesse provado; talvez porque, tendo-o
visto desde então, sem comer, nas prateleiras das confeitarias, sua imagem
havia deixado aqueles dias de Combray para se ligar a outros mais recentes;
talvez porque, dessas lembranças abandonadas há tanto fora da memória, nada
sobrevivesse, tudo se houvesse desagregado; as formas e também a da pequena
conchinha de confeitaria, tão gordamente sensual sob as suas estrias severas e
devotas tinham sido abolidas, ou, atormentadas, haviam perdido a força de
expansão que lhes teria permitido alcançar a consciência. Mas, quando nada
subsiste de um passado antigo, depois da morte dos seres, depois da destruição
das coisas, sozinhos, mais frágeis porém mais vivazes, mais imateriais, mais
persistentes, mais fiéis, o aroma e o sabor permanecem ainda por muito tempo,
como almas, chamando-se, ouvindo, esperando, sobre as ruínas de tudo o mais,
levando sem se submeterem, sobre suas gotículas quase impalpáveis, o imenso
edifício das recordações.
E logo que reconheci o gosto
do pedaço da madeleine mergulhado no chá que me dava minha tia (embora
não soubesse ainda e devesse deixar para bem mais tarde a descoberta de por que
essa lembrança me fazia tão feliz), logo a velha casa cinzenta que dava para a
rua, onde estava o quarto dela, veio como um cenário de teatro se colar ao
pequeno pavilhão, que dava para o jardim, construído pela família nos fundos (o
lanço truncado que era o único que recordara até então); e com a casa, a
cidade, da manhã à noite e em todos os tempos, a praça para onde me mandavam
antes do almoço, as ruas aonde eu ia correr, os caminhos por onde se passeava
quando fazia bom tempo. E como nesse jogo em que os japoneses se divertem
mergulhando numa bacia de porcelana cheia de água pequeninos pedaços de papel
até então indistintos que, mal são mergulhados, se estiram, se contorcem, se
colorem, se diferenciam, tornando-se flores, casas, pessoas consistentes e
reconhecíveis, assim agora todas as flores do nosso jardim e as do parque do
Sr. Swann, e as ninféias do Vivonne, e a boa gente da aldeia e suas pequenas
residências, e a igreja, e toda Combray e suas redondezas, tudo isso que toma
forma e solidez, saiu, cidade e jardins, de minha xícara de chá.
Nenhum comentário:
Postar um comentário