segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Proust, madeleines e a memória afetiva.


Todos têm uma história que envolve aromas e sabores para contar, não é mesmo?

Em nosso caso, são várias e, obviamente, envolvem guloseimas. Bolinho de polvilho saindo do forno tem cheiro de três meninas procurando o esconderijo dos quitutes que só poderiam ser devorados depois que toda a fornada ficasse pronta.

Cheiro de bolo de fubá é o aroma das manhãs de sábado e o gosto do bolo de fubá misturado ao do café lembra as tardes de sábado. Pão assando invariavelmente remete ao nosso querido pai que fazia os mais deliciosos pães do mundo! Todos os dias nossa casa cheirava a pão fresquinho.

E por aí vai. Chegávamos da escola, no final da tarde, e encontrávamos os tais pães e uma jarra verde - de louça, é claro – cheinha de chocolate quente (chocolate mesmo, amarguinho). Fechar os olhos e lembrar de tudo isso garante passagem de primeira classe aos melhores momentos de nossas vidas.

Hoje em dia também associamos aromas e gostos a momentos especiais. Provavelmente esse processo nunca terá fim. Teremos 80 anos e nos lembraremos do cheiro-do-pão-da-padaria-da-esquina (que Deus conserve nossa memória, por favor).

Proust, em sua obra “Em busca do tempo perdido”, para resgatar a própria infância, recorre a um bolinho que sua tia costumava fazer. Os tais bolinhos eram madeleines. Há varias histórias que tentam decifrar a origem das madeleines; deixaremos isso para outra hora. Na realidade, o que realmente importa é que esses deliciosos bolinhos são a simplicidade em forma de comidinha, daquelas que se come de olhos fechados e que levam embora todos os males de nossa vida cotidiana.

E esse é o nosso dia a dia aqui na Fada Formiga. Cada guloseima tem uma história e quando nossos amigos fecham os olhos e viajam enquanto devoram um pedaço de bolo de fubá ou um biscoitinho amanteigado ou uma de nossas deliciosas madeleines (aqui tem de lavanda, flor de laranjeira, limão, água de rosas e jasmim!), nossos corações enchem-se de alegria.

Voltando às madeleines imortalizadas por Proust, que tal convocar o passado através de um deliciosa madeleine e uma xícara de chá?
 
E para quem não conhece, aí está o trecho da referida obra de Proust.
Vale a leitura!
 
PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido – Vol. 1: O caminho de Swann. (trecho)
Fazia já muitos anos que, de Combray, tudo que não fosse o teatro e o drama do meu deitar não existia mais para mim, quando num dia de inverno, chegando eu em casa, minha mãe, vendo-me com frio, propôs que tomasse, contra meus hábitos, um pouco de chá. A princípio recusei e, nem sei bem porque, acabei aceitando. Ela então mandou buscar um desses biscoitos curtos e rechonchudos chamados madeleines, que parecem ter sido moldados na valva estriada de uma concha de São Tiago. E logo, maquinalmente, acabrunhado pelo dia tristonho e a perspectiva de um dia seguinte igualmente sombrio, levei à boca uma colherada de chá onde deixara amolecer um pedaço da madeleine.
Mas no mesmo instante em que esse gole, misturado com os farelos do biscoito, tocou meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem a noção de sua causa. Rapidamente se me tornaram indiferentes as vicissitudes da minha vida, inofensivos os seus desastres, ilusória a sua brevidade, da mesma forma como opera o amor, enchendo-me de uma essência preciosa; ou antes, essa essência não estava em mim, ela era eu. Já não me sentia medíocre, contingente, mortal. De onde poderia ter vindo essa alegria poderosa? Sentia que estava ligada ao gosto do chá e do biscoito, mas ultrapassava-o infinitivamente, não deveria ser da mesma espécie. De onde vinha? Que significaria? Onde apreendê-Ia? Bebi um segundo gole no qual não achei nada além do que no primeiro, um terceiro que me trouxe um tanto menos que o segundo. É tempo de parar, o dom da bebida parece diminuir. É claro que a verdade que busco não está nela, mas em mim. Ela a despertou mas não a conhece, podendo só repetir indefinidamente, cada vez com menos força, o mesmo testemunho que não sei interpretar e que desejo ao menos poder lhe pedir novamente e reencontrar intacto, à minha disposição, daqui a pouco, para um esclarecimento decisivo. Deponho a xícara e me dirijo ao meu espírito. Cabe a ele encontrar a verdade. Mas de que modo? Incerteza grave, todas as vezes em que o espírito se sente ultrapassado por si mesmo; quando ele, o pesquisador, é ao mesmo tempo a região obscura que deve pesquisar e onde toda a sua bagagem não lhe servirá para nada. Procurar? Não apenas: criar. Está diante de algo que ainda não existe e que só ele pode tornar real, e depois fazer entrar na sua luz.
E recomeço a me perguntar o que poderia ser esse estado desconhecido, que não apresentava nenhuma prova lógica, e sim a evidência de sua felicidade, de sua realidade, ante a qual as outras se desvaneciam. Quero tentar fazê-lo reaparecer. Pelo pensamento, retrocedo ao instante em que tomei a primeira colherada de chá, e encontro a mesma situação, sem qualquer luz nova. Peço a meu espírito mais um esforço, que me traga ainda uma vez a sensação que escapa. E, para que nada quebre o impulso com que ele vai procurar recuperá-la, afasto todos os obstáculos, toda idéia estranha, protejo meus ouvidos e minha atenção contra os rumores da sala ao lado. Porém, sentindo que o espírito se cansa sem proveito, forço-o, ao contrário, a aceitar a distração que lhe recusava, a pensar em outra coisa, a se refazer antes de uma tentativa suprema. Depois, pela segunda vez, faço o vácuo diante dele, e coloco-o de novo em face do sabor ainda recente daquele primeiro gole, e sinto palpitar em mim algo que se desloca, desejaria elevar-se, algo que teria se soltado a uma grande profundidade; não sei o que é, mas aquilo sobe devagar; experimento a resistência e ouço o rumor das distâncias atravessadas.
Certamente, o que palpita desse modo bem dentro de mim, deve ser a imagem, a lembrança visual, que, ligada a esse sabor, tenta segui-lo até mim. Mas debate-se muito longe, muito confusamente; mal percebo o reflexo neutro em que se confunde o inatingível turbilhão de cores remudadas; e não consigo distinguir a forma, pedir-lhe como ao único intérprete possível, que me traduza o testemunho de sua contemporânea, de sua companheira inseparável, pedir-lhe que me diga de que circunstância particular, de que época do passado se trata.
Será que vai chegar até a superfície de minha clara consciência, essa lembrança, o instante antigo que a atração de um instante idêntico veio de tão longe solicitar, comover, erguer do fundo de mim? Não sei. Agora não sinto mais nada, parou, desceu de novo talvez; quem sabe se nunca mais voltará de sua noite? Dez vezes é preciso que eu recomece, que me debruce para ele. E, a cada vez, a canseira que nos desvia de toda tarefa difícil, de toda obra importante, me aconselhou largar aquilo, beber meu chá pensando apenas nos aborrecimentos de hoje, nos desejos de amanhã, que se deixam remoer sem fadiga.
E de súbito a lembrança me apareceu. Aquele gosto era o do pedacinho de madeleine que minha tia Léonie me dava aos domingos pela manhã em Combray (porque nesse dia eu não saía antes da hora da missa), quando ia lhe dar bom-dia no seu quarto, depois de mergulhá-lo em sua infusão de chá ou de tília. A vista do pequeno biscoito não me recordara coisa alguma antes que o tivesse provado; talvez porque, tendo-o visto desde então, sem comer, nas prateleiras das confeitarias, sua imagem havia deixado aqueles dias de Combray para se ligar a outros mais recentes; talvez porque, dessas lembranças abandonadas há tanto fora da memória, nada sobrevivesse, tudo se houvesse desagregado; as formas e também a da pequena conchinha de confeitaria, tão gordamente sensual sob as suas estrias severas e devotas tinham sido abolidas, ou, atormentadas, haviam perdido a força de expansão que lhes teria permitido alcançar a consciência. Mas, quando nada subsiste de um passado antigo, depois da morte dos seres, depois da destruição das coisas, sozinhos, mais frágeis porém mais vivazes, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis, o aroma e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, chamando-se, ouvindo, esperando, sobre as ruínas de tudo o mais, levando sem se submeterem, sobre suas gotículas quase impalpáveis, o imenso edifício das recordações.
E logo que reconheci o gosto do pedaço da madeleine mergulhado no chá que me dava minha tia (embora não soubesse ainda e devesse deixar para bem mais tarde a descoberta de por que essa lembrança me fazia tão feliz), logo a velha casa cinzenta que dava para a rua, onde estava o quarto dela, veio como um cenário de teatro se colar ao pequeno pavilhão, que dava para o jardim, construído pela família nos fundos (o lanço truncado que era o único que recordara até então); e com a casa, a cidade, da manhã à noite e em todos os tempos, a praça para onde me mandavam antes do almoço, as ruas aonde eu ia correr, os caminhos por onde se passeava quando fazia bom tempo. E como nesse jogo em que os japoneses se divertem mergulhando numa bacia de porcelana cheia de água pequeninos pedaços de papel até então indistintos que, mal são mergulhados, se estiram, se contorcem, se colorem, se diferenciam, tornando-se flores, casas, pessoas consistentes e reconhecíveis, assim agora todas as flores do nosso jardim e as do parque do Sr. Swann, e as ninféias do Vivonne, e a boa gente da aldeia e suas pequenas residências, e a igreja, e toda Combray e suas redondezas, tudo isso que toma forma e solidez, saiu, cidade e jardins, de minha xícara de chá.